Leon Tolstoi: O REINO DE DEUS ESTÁ EM VÓS
Publicado em 1893 – Traduzido por: CEUNA PORTOCARRERO
2ª EDIÇÃO, 1994.
Liberdade
Fala-se
de libertar a igreja da tutela do Estado, de dar liberdade aos cristãos. Há
nisto um mal-entendido. A liberdade não pode ser concedida nem roubada aos
cristãos: é sua propriedade inalienável; e ao falar em dá-la ou retomá-la,
trata-se evidentemente não dos verdadeiros cristãos, mas daqueles que apenas
usam este nome. O cristão não pode deixar de ser livre, porque nada e ninguém
pode deter ou até retardar seu caminho para o objetivo por ele
preestabelecido.!
Para
sentir-se livre de qualquer poder humano, bastaria que o homem concebesse sua
vida segundo a doutrina de Cristo, ou seja, compreendesse que sua vida não
pertence nem a ele mesmo, nem a sua família, nem a sua pátria, mas somente
Àquele que a concedeu, e que, portanto, deve observar não a lei de sua
personalidade, de sua família ou de sua pátria, mas a lei que nada limita, a
lei d'Aquele do qual provém. Bastar-lhe-ia compreender que o objetivo de toda a
vida é observar a lei de Deus porque, diante desta lei que dá origem a todas as
outras, todas as leis humanas assumiriam seu caráter obrigatório.
O
cristão liberta-se, assim, de qualquer poder humano pelo fato de que considera
a lei do amor, inata em cada um de nós e tornada consciente por Cristo, como a
única norma de vida. Ele pode ser atingido pela violência, privado de sua
liberdade material, dominado pelas paixões (aquele que comete pecado é escravo
do pecado), mas não pode deixar de ser livre, não pode ser obrigado, por
qualquer perigo ou por qualquer ameaça, a cometer uma ação contrária a sua
consciência. Ele não pode ser coagido porque as privações e sofrimentos,
ocasionados pelo conceito social da vida, que são tão fortes contra os homens,
não agem sobre ele. As privações e sofrimentos, que roubam aos homens, por meio
do conceito social, a felicidade para a qual vivem, longe de comprometer a do
cristão, que reside no cumprimento da vontade de Deus, tornam-na ao contrário
mais intensa, porque ele sofre por Deus.
Por
isso o cristão não pode cumprir os mandamentos da lei externa, quando não estão
de acordo com a lei divina do amor, como acontece com as exigências dos
governos, e não pode sequer submeter-se a quem quer que seja ou ao que quer que
seja, nem reconhecer qualquer submissão.
A
promessa de submissão a qualquer governo — este ato considerado como a base da
vida social — é a negação absoluta do cristianismo, porque prometer
antecipadamente ser submisso às leis elaboradas pelos homens significa trair o
cristianismo, que não reconhece, em todas as ocasiões da vida, senão a única
lei divina do amor.
À
época do antigo conceito, era possível prometer cumprir a vontade do poder sem
infringir a de Deus que consistia na circuncisão, na observância do dia de
sábado, na abstenção de certos alimentos. Uma coisa não contradizia a outra.
Eis exatamente o que distingue a religião cristã daquelas que a precederam. Ela
não reclama do homem determinados atos negativos externos, mas coloca-o, em
relação a seus semelhantes, numa outra posição, da qual podem resultar atos
muito diferentes que não se poderiam definir antecipadamente. Por isso o
cristão não pode prometer cumprir uma vontade alheia sem saber em que ela
consiste, nem obedecer às leis humanas variáveis, nem prometer fazer ou não
algo num determinado tempo, porque ele ignora em que momento a lei cristã do
amor, para a qual vive, pedir-lhe-á algo e o que lhe pedirá. Com tal promessa,
o cristão declararia que a lei de Deus não é mais a única lei de sua vida.
O
cristão que prometesse obedecer às leis humanas seria como um operário que,
começando a servir um patrão, prometesse ao mesmo tempo obedecer às ordens de
um estranho. Não é possível servir dois patrões simultaneamente.
O
cristão liberta-se do poder humano pelo fato de que reconhece somente a vontade
de Deus. E esta libertação acontece sem lutas, não pela destruição das formas
atuais de vida, mas pela modificação do conceito de vida. Esta libertação
ocorre porque o cristão, submetido à lei do amor a ele revelada pelo Mestre,
considera qualquer violência inútil e condenável, e também porque as privações
e os sofrimentos que dominam o homem social são para ele apenas condições
inevitáveis da existência e porque suporta pacientemente, sem se rebelar, as
doenças, a carestia e as outras calamidades.
O
cristão age segundo a profecia adotada por seu Mestre: "Ele não discutirá
nem clamará; nem sua voz nas ruas se ouvirá. Ele não quebrará o caniço rachado
nem apagará a mecha que ainda fumega, até que conduza o Direito ao
Triunfo" (Mt 12,19-20).
O
cristão não disputa com outrem, não ataca o próximo, não usa de violência para
com ninguém. Ao contrário, suporta a violência com resignação e, assim, se
liberta e liberta o mundo de qualquer poder externo.
"Conhecereis
a verdade e a verdade vos salvará." Caso houvesse dúvidas de que o
cristianismo é uma verdade, a liberdade perfeita, experimentada sem restrições
pelo homem tão logo este assimile o conceito cristão de vida, seria uma
indiscutível prova de sua verdade.
Os
homens, em seu atual estágio, assemelham-se a um enxame suspenso num ramo. Sua
situação é provisória e deve, a qualquer custo, ser modificada. É preciso que
ele voe e procure outra habitação. Cada uma das abelhas sabe disto e deseja
mudar esta situação, mas estão presas umas às outras e não podem voar todas
juntas, e o enxame permanece suspenso. Parece que não haveria saída nem para as
abelhas, nem para os homens presos na rede do conceito social, se cada um não
fosse dotado da faculdade de assimilar o conceito cristão.
Se
nenhuma abelha levantasse voo sem esperar pelas outras, o enxame nunca mudaria
de lugar, e se o homem que assimilou o conceito cristão não vivesse segundo
este conceito, a humanidade nunca mudaria sua situação. Mas, como basta que uma
abelha abra as asas e voe, para que uma segunda, uma terceira, uma décima, uma
centésima, a sigam, e, assim, todo enxame levantará voo livremente; do mesmo
modo bastaria que um só homem vivesse segundo os ensinamentos de Cristo para que
um segundo, um terceiro, um centésimo seguissem seu exemplo, fazendo
desaparecer o círculo vicioso da vida social, do qual não parece haver saída.
Mas
os homens acham esse método muito longo e buscam um outro que os possa libertar
a todos de uma só vez. Seria como se as abelhas achassem muito demorado
desprenderem-se uma a uma e quisessem que todo o enxame levantasse voo de uma
só vez. Mas isto é impossível, e enquanto a primeira, a segunda, a terceira, a
centésima não abrirem as asas e voarem, todo o enxame permanecerá imóvel.
Enquanto cada cristão não viver isoladamente segundo sua doutrina, as novas
formas de vida não se estabelecerão.
Um
dos mais estranhos fenômenos de nosso tempo é que a propaganda da escravidão,
feita por governos que dela precisam, é também feita por partidários das
teorias sociais que se consideram apóstolos da liberdade.
Estes
homens anunciam que a melhoria das condições de vida, o acordo entre a
realidade e a consciência, ocorrerá não em conseqüência de esforços pessoais de
indivíduos isolados, mas com uma violenta reorganização da sociedade, que se
produzirá por si só, não se sabe como. Dizem que não devemos caminhar para o
objetivo com nossas próprias pernas, mas que é preciso esperar que se introduza
sob nossos pés uma espécie de chão móvel que nos levará para onde devemos ir.
Por isso devemos permanecer parados e dirigir todos nossos esforços para a
criação desse chão imaginário.
Do
ponto de vista econômico, sustenta-se uma teoria que pode ser formulada assim:
"Quanto pior, melhor." Diz-se que quanto maior a concentração do
capital e, em conseqüência, maior opressão dos trabalhadores, tanto mais
próxima estará a libertação. Qualquer esforço pessoal para se libertar da
opressão do capital é, portanto, inútil. Do ponto de vista político, prega-se
que quanto maior o poder do Estado que se deve apoderar do domínio ainda livre
da vida doméstica, tanto melhor irão as coisas; por isso é preciso pedir a
intervenção do governo na vida doméstica. Do ponto de vista da política internacional,
afirma-se que o aumento dos meios de destruição conduzirá à necessidade do
desarmamento através de congressos, tribunais, arbitragem etc. E — curioso! — a
inércia dos homens é tanta que aceitam estas teorias, embora todo o curso da
vida, cada passo à frente, prove sua falsidade.
Os
homens sofrem com a opressão e lhes é aconselhado procurar, para melhorar sua
situação, métodos gerais que serão aplicados pelo poder ao qual devem continuar
a se submeter. É mais evidente, contudo, que desta forma nada seria feito,
pois, além de aumentar a força do poder e a intensidade da opressão, nenhum
outro erro dos homens afasta-os mais do objetivo a que aspiram. Fazem toda
espécie de tentativas e inventam toda espécie de métodos complicados para mudar
a situação, mas não fazem o que seria necessário, não usam o método mais
simples que consiste em não fazer aquilo que cria esta situação.
(p.80-82)